Entrevista com o artista: Talles Lopes
Em sua primeira exposição individual na Cerrado | Goiânia, intitulada “Paisagem aclimatada”, Talles Lopes traz um olhar profundo e reflexivo sobre a relação entre a paisagem goiana e suas influências históricas. Conversamos com o artista sobre suas inspirações, processos criativos e sua trajetória. Confira!
Talles, para começar, como você se sente ao realizar sua primeira exposição individual em Goiânia?
Goiânia foi um lugar muito importante na construção do meu trabalho nos últimos anos, tanto as trocas que a cidade me oportunizou na convivência com os artistas, quanto sua própria história. Naturalmente, me sinto provocado pelas trocas que podem surgir dessa inserção do meu trabalho em um território que informa minha prática artística.
Quando ainda estava cursando a minha graduação em arquitetura no campus da UEG, em Anápolis, lembro-me de consultar os livros que tratavam da construção de Goiânia, como o romance “Chão Vermelho” (1956) de Eli Brasiliense e o trabalho da pesquisadora Celina Manso “Goiânia: Uma concepção urbana, moderna e contemporânea” (2001). Essas são algumas das produções que me faziam pensar sobre a aclimatação de uma paisagem ocidental dentro desse território ancestral que é o cerrado goiano.
O que inspirou o tema “Paisagem aclimatada” e como ele se relaciona com sua trajetória artística?
O tema “Paisagem aclimatada” está ligado aos jardins de aclimatação usados na adaptação de espécies exóticas. Lugares como o Brasil testemunharam um trânsito de plantas trazidas da Europa para a aclimatação e composição de jardins ornamentais. Esse sintoma do colonialismo, também manifesto na pilhagem de espécies nativas brasileiras para inserção em outros mercados, era visível nos jardins botânicos europeus que aclimatavam espécies de colônias de diferentes continentes, fazendo desses espaços um atestado de dominação territorial ultramarino.
Ainda no campo da botânica, “Paisagem Aclimatada” também trata da presença expressiva de plantas tropicais na ornamentação dos ambientes internos da arquitetura modernista brasileira, importante símbolo do desenvolvimentismo e da Marcha para o Oeste no país, sugerindo uma brincadeira de mal gosto com a semelhança entre esses espaços e os tradicionais jardins de aclimatação.
Acho que o tema se relaciona com minha trajetória na medida em que está indiretamente ligado à primeira residência artística, que aconteceu em 2021. Naquele momento, o duo de artista espanhóis Beatriz Lecuona e Oscar Hernandez me convidaram para trabalhar como artista residente no ateliê El Despacho, em Santa Cruz de Tenerife, no arquipélago de Canárias, na Espanha. Ali, tive a oportunidade de aprender muito com dois artistas contemporâneos a mim: Miguel Rubio e Eduardo Hodgson. Eles me apresentaram o Jardim de Aclimatação de Orotava, construído pelo império espanhol para aclimatar espécies trazidas da América no contexto colonial. Hoje percebo que esse contato sutilmente direcionou o desenvolvimento do meu trabalho atual.
Quais são as principais mensagens ou emoções que você espera transmitir com essa exposição?
Além do enredo botânico da exposição, penso que ela também transite muitas questões sobre tempo e memória. O que pode ser observado na apropriação de materiais históricos de tempos muito distintos em um mesmo trabalho. Um exemplo são as manchas orgânicas que referenciam obras de artistas e arquitetos modernos do século passado. Tais formas são mescladas com os contornos dos mapas coloniais da costa brasileira, produzidos séculos antes.
Aproximar materiais de períodos distintos é sempre um exercício de examinar os contrastes, mas também de avaliar como eles podem agenciar circunstâncias análogas. Sempre me chamou atenção a maneira como a cartografia colonial, e de períodos mais remotos, abarcavam a “licença poética” de seus idealizadores; a imprecisão das informações sobre o território mapeado que dava margem para que os cartógrafos “completassem” o mapa de maneira arbitrária. Como no Atlas Miller (1519), que representa a presença de um dragão na região do Brasil.
Por outro lado, essa maneira de retratar o mundo me lembra a lógica de “tabula rasa” (do latim, “folha em branco”) que influenciou o pensamento da arquitetura modernista. A ideia está relacionada a uma postura arquitetônica que desconsidera ou anula os aspectos pré-existente da paisagem onde será edificada.
Arriscando que a lógica da tábula rasa reverbere nas formas “amebóides” do formalismo moderno, eu penso que a mostra disfarça atrás de desenhos inofensivos, algum ponto comum entre essas visualidades de tempos distintos.
Pode nos contar sobre o processo criativo por trás das obras expostas?
As obras de “Paisagem Aclimatada” são resultantes das investigações que fiz em alguns arquivos durante os últimos três anos, buscando pensar sobre a manutenção da memória e das narrativas oficiais através das coleções de museus e instituições dedicadas à memória.
Em 2022, recebi uma bolsa para desenvolver meu trabalho na Delfina Foundation em Londres durante 2 meses. Lá, pude visitar a biblioteca e os arquivos do RIBA (Royal Institute of British Architects) e me deparar com uma série de fotos originais do Pavilhão do Brasil na Feira mundial de Bruxelas (1958). Os jardins internos de Burle Marx que ocupavam o interior do pavilhão me chamaram muita atenção, me fazendo questionar como como esse paisagismo dialogava com toda a propaganda desenvolvimentista que ocupava o restante do edifício representante do Brasil.
Desde então, os jardins vêm emergindo como uma questão dentro da minha prática. Nos anos seguintes, pude estar como artista residente no IPA – Institute for Public Architecture (2023) e no The Watermill Center (2024) em Nova Iorque. Nesses dois momentos, me dediquei a visitar arquivos da cidade, especialmente os do MoMA, me provocando a pensar sobre a presença ornamental das plantas tropicais em mostras sobre a arquitetura brasileira e a latino-americana naquele museu.
Nesse sentido, entendo a exposição na Cerrado Galeria como um adensamento das várias camadas do processo que desenvolvi nesses últimos anos, a partir dessa relação com os arquivos e com um tipo de “memória oficial” da história do Brasil a partir da arquitetura.
Quais técnicas ou materiais você utilizou para criar as obras dessa exposição?
Na exposição, transito entre pinturas, aquarelas e desenhos sobre papel, algumas se mesclam com a pintura das paredes de forma site-specific. Geralmente a escolha de técnica ou material varia muito de acordo com a demanda de cada trabalho. Talvez pela minha formação em arquitetura, não cheguei a fundamentar minha prática dentro de um suporte plástico muito específico. Ao mesmo tempo, meus trabalhos estão muito marcados pelo tradicional desenho técnico de prancheta ensinado nos cursos de arquitetura.
Como você escolhe a paleta de cores e os elementos visuais em suas obras?
A exposição é marcada por formas orgânicas inspiradas por artistas como Cândido Portinari e Burle Marx, que podem ser vistas nas paredes e nas próprias pinturas. Me interessava trabalhar com um jogo monocromático que rompesse com as variedades de cores esperada nas produções desses artistas, que estão ligados a um certo estereótipo de brasilidade. Na escolha das cores, optei por uma paleta que remetesse à terra, elemento fundamental, mas pouco visto nos paisagismos em geral, ao passo que também me interessei pelos tons que mentalmente associo ao cerrado.
Você tem alguma obra específica na exposição que seja particularmente significativa para você? Por quê?
A obra “Terra non descoperta” é o trabalho mais importante do conjunto para mim, talvez por ter sido a primeira obra do conjunto e que também guiou a criação das demais.
Como você espera que o público se conecte com suas obras? Alguma reação específica que você gostaria de ver?
Eu tento não criar expectativas em relação a leitura do público, mas considerando que as obras citam referências carregadas de um certo imaginário de brasilidade bastante difundido ao longo da história, penso que é de se esperar que uma primeira leitura seja guiada pela familiaridade com esse repertório imagético.
Você acredita que a arte pode provocar uma mudança na percepção das paisagens que nos cercam? Como?
Acho que um trabalho pode nos entreter e constranger ao mesmo tempo. As ferramentas da arte que geralmente chamamos de “linguagem poética” estão passíveis de nos indagar sobre como percebemos criticamente a paisagem à nossa volta.
Enquanto trabalhava em “Paisagem aclimatada” passei algum tempo pensando sobre os mapas coloniais que estava pesquisando para a exposição, muitos deles usaram de uma liberdade pictórica e criativa para ficcionalizar o interior do Brasil como um grande vazio, uma espécie de natureza selvagem e intocada, condicionando uma certa percepção da paisagem que determinou como nos relacionamos com esse território até hoje.
Não sei como funciona para as demais pessoas, mas quando penso nos trabalhos da mostra me sinto obrigado a perceber que os lúdicos mapas coloniais e os belos jardins modernistas podem estar a velar uma paisagem ancestral ao prever esse território como uma “tabula rasa”.
Para conhecer de perto o trabalho de Talles Lopes, visite a mostra “Paisagem Aclimatada”, em cartaz na Cerrado Galeria | Goiânia até 11 de novembro, ou entre em contato conosco por meio de nosso WhatsApp, site ou redes sociais.