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Goiânia

Virgílio Neto: Pouco antes do ocidente se assombrar
Curadoria: Texto de Thierry Freitas
11 de outubro a 15 de novembro

A mostra apresenta uma dimensão imersiva, em que pintura, palavra e objeto se entrelaçam em composições que transbordam a tela, ocupando as paredes como extensão do próprio gesto criativo.

O mundo exterior existe como um ator no palco: está lá, mas é outra coisa. 
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, fragmento 383) 

Virgílio Neto (Brasília, 1986 – vive em São Paulo) tem constituído um grandiloquente e imersivo trabalho em desenho e pintura cada vez mais grandiloquente e imersivo. Suas composições nascem a partir de uma fusão de formas que, articuladas por um fio condutor (muitas vezes) invisível, se espalham e escorrem, frequentemente ultrapassando os limites da moldura. 
 
A exposição na Cerrado evidencia justamente a intuição presente desde os primórdios de sua trajetória, que agora se afirma como extensão natural de sua pesquisa: a de que a composição espacial tem assumido papel cada vez mais decisivo em sua obra. 

Envoltos por um enevoamento e um esmaecimento que circunda figuras e palavras, suas pinturas ganham densidade ao serem observadas em conjunto, principalmente quando o artista assume as paredes como uma pele pictórica onde as cenas das telas ganham continuidade. Nessas nuvens de imagens, os elementos não apenas coexistem, mas se entrelaçam, instaurando um universo sinestésico em que tudo reverbera.  
 
Embora resista a narrativas lineares, sua produção não deixa de ser atravessada por vivências e influências que ecoam nas telas. Esta exposição acontece após duas importantes experiências recentes de Virgílio como viajante: uma temporada de alguns meses no Japão, onde realizou uma residência artística na cidade de Yokohama, e uma viagem a cidades históricas de Goiás. 
 
O viajante se encontra em um estado de suspensão. Aquilo que se apresenta como novidade já foi, de algum modo, imaginado. Cada experiência converte-se rapidamente em lembrança e, diante da estranheza dos lugares, torna-se inevitável recorrer ao ponto de partida como parâmetro para o que se vê. Ao longo de minhas conversas com Virgílio, ficou presente a sensação de que ambas as experiências dispararam reflexões sobre seu lugar de origem, seu ofício, e até mesmo o levaram a retomar um interesse antigo de compreender Brasília, sua terra natal, para além de suas experiências e vivências na cidade. 
 
Como nos lembra José Saramago, “é preciso sair da ilha para ver a ilha”. 
 
A aproximação de Virgílio com elementos japoneses não inaugura algo inédito, mas explicita afinidades que já se insinuavam em sua obra. Mesmo antes da vivência in loco, já emergiam sinais de um orientalismo difuso, que ia dos motivos decorativos às carpas, dragões, guerreiros e caligrafias, além da crença compartilhada de que o vazio não é ausência, mas espaço carregado de potência. Sua estadia no Japão, portanto, não se configura como um exercício de deglutição ou mera mímese, mas como o aprofundamento de uma sensibilidade. 

O contato direto com a cultura japonesa enfatizou também a percepção da relação vívida que o orientalismo tem com objetos cotidianos, refletida em um esmero decorativo com o qual são confeccionados e adornados. Tal compreensão despertou no artista o interesse em experimentar novos meios expressivos. Nesse movimento, Virgílio passa a utilizar utensílios do cotidiano brasileiro, como gamelas e tábuas, convertendo-os em suportes para a pintura, num flerte deliberado com a já conhecida tensão entre artes visuais e decoração. 
 
Mas, ainda sob forte influência de todas essas experiências, Virgílio realizou um movimento inverso: voltou-se para perto e foi visitar o interior do estado, passando por lugares como Pirenópolis e a cidade de Goiás. “Sou de família goiana, então fiquei pensando sobre o lugar de onde vim”, comentou comigo em um de nossos encontros.  


Tal como em certas localidades do Japão, essas regiões parecem guardar um tempo próprio, alheio à aceleração das grandes metrópoles e conceitualmente distante de Brasília, apesar da proximidade geográfica.  


Se a capital é marcada por contrastes latentes e carrega a singularidade de ter sido erguida sob a promessa de uma utopia, nas cidades históricas prevalece outra atmosfera. Ali, os encontros são atravessados por uma pessoalidade interiorana. Entrar na sala de uma casa significa partilhar intimidade; os produtos, como cachaça e doces, feitos à mão, são a oposição dos produtos industriais e serializados a que nos habituamos.  
 
Nesse percurso, Virgílio foi reunindo uma série de objetos que hoje integram suas novas pinturas. São itens de artesanato local e outros objetos, como chifres e os piercings de bois, adquiridos em casas de produtos agropecuários – uma lembrança de que o agronegócio é motor econômico em localidades como essas.  


Essa nova fase de sua produção passa, então, a ser permeada por objetos e figuras escultóricas, reforçando o interesse do artista em extrapolar a virtualidade e bidimensionalidade da pintura rumo ao mundo tangível.  
 
Feitas de fragmentos, ecos e reverberações, essas pinturas não são um relato de viagem, tampouco uma cartografia de influências externas, mas a expressão pictórica de um artista em trânsito contínuo entre meios, lugares, tempos e sensações. Talvez, entre Pirenópolis e Yokohama, haja mais pontos de contato do que poderíamos imaginar. 
 

Thierry Freitas, setembro de 2025 
é historiador da arte e curador da Pinacoteca de São Paulo.