Goiânia
O fogo está presente de diferentes maneiras nos trabalhos exibidos na mostra: é apresentado fisicamente como chama acesa no corpo de uma escultura, está latente nos desenhos realizados com a explosão de pólvora sobre o papel e é fundamental no processo de transformação dos metais ocorrida durante a fundição do bronze.
Texto crítico por Divino Sobral
Interessado na sutileza das questões envolvidas no debate entre o visível e o invisível, o material e o imaterial, há cerca de três décadas Vanderlei Lopes investiga, profundamente, a transformação alquímica da matéria para produzir obras dotadas de intensa sedução visual, executadas com fatura esmerada e enredadas na trama conceitual da linguagem. Operando com rigor formal, disciplina crítica e sensibilidade poética, o artista, ao longo de sua trajetória, formou um vasto repertório, esmiuçando a história da arte, questionando a lógica do monumento, conversando com aspectos da arquitetura, apropriando-se de seres vivos, produzindo abordagens políticas e redimensionando o significado dos objetos e situações cotidianas, entre outras questões.
O fogo participa das cosmogonias do mundo narradas pelas mitologias ancestrais. O domínio sobre ele permitiu à humanidade aceder a outro estado civilizatório, criando tecnologias que abrangiam desde as formas de alimentação aos modos de fazer guerra. Contavam os gregos antigos que o fogo é um bem roubado dos deuses por Prometeu e trazido à humanidade para seu desenvolvimento, sendo a chama olímpica considerada uma testemunha do esforço humano para se elevar ao heroico. Há muito que o fogo foi entronizado no universo do sagrado. Conforme a tradição judaico-cristã, a sarça que ardia e não se consumia e as línguas de fogo que desceram sobre os apóstolos no dia de Pentecostes representam manifestações do Divino. Segundo a narrativa apocalíptica, o mundo se acabará por ação do Sol, que abrasará os homens com fogo. É empregado nos ritos de diversas religiões como um condutor de energia espiritual em formatos de velas, incensos e fogueiras. O fogo que sacraliza é o mesmo que pune, destrói e mata. Eis a condenação dos espíritos impuros ao suplício no fogo do inferno. Na Idade Média, a Inquisição punia os extraviados das normas religiosas e sociais, queimando-os vivos. Ao longo da história, os incêndios destruíram valiosos patrimônios culturais, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978, o Museu Nacional, em 2018, e a Cinemateca Nacional, em 2021. Na atualidade, as grandes queimadas provocam graves danos aos ecossistemas brasileiros, e o aquecimento global tem acarretado incêndios florestais em diferentes regiões do mundo, colocando o fogo como um problema de escala planetária.
A parte do fogo é título de uma obra do escritor e filósofo francês Maurice Blanchot (1907–2003) e, também, de uma publicação editada em 1980, no Rio de Janeiro, por um grupo de artistas e críticos de arte cariocas e paulistas que debatiam uma pauta relevante para a vanguarda conceitual em atividade na época*. Nomeando sua exposição com esse título, Vanderlei Lopes ressalta que o fogo está presente de diferentes maneiras nos trabalhos exibidos: é apresentado fisicamente como chama acesa no corpo de uma escultura; está latente nos desenhos realizados com a explosão de pólvora sobre o papel; é fundamental no processo de transformação dos metais ocorrida durante a fundição do bronze.
“A parte do fogo é um espaço onde os trabalhos vão agir”, propunha Cildo Meireles na revista. É oportuno trazer esta colocação para pensar a exposição de Vanderlei Lopes como um espaço onde as obras agem operando o deslocamento da linguagem por meio da transformação dos materiais – explodir para desenhar e imobilizar o fluxo da água –, provocando efeitos tanto sobre o próprio espaço arquitetônico, alterando nossa percepção dele, quanto sobre o espectador, esticando o limite de sua sensibilidade. Igualmente relevante é compreender como as obras atuam, representando em si mesmas situações que contêm certa dramaticidade, ao mesmo tempo em que agem como formas em estado de epifania dentro da caixa cênica do cubo branco. Apontar esse aspecto da atuação implica pensar a importância do posicionamento correto da obra no espaço expositivo para potencializar suas propriedades de conversar com o seu entorno, questão importante na obra de Vanderlei Lopes.
As esculturas da série Vazamentos conectam a parede ao chão e invadem o espaço tridimensional. Executadas em bronze polido, as formas saem como fluxos contínuos do interior escuro de buracos escavados diretamente na parede, atraídos pela gravidade, escorrendo pelo espaço à frente da parede e formando empoçamentos sobre o chão. Essas esculturas provocam a imaginação, sugerindo um acontecimento que ocorreu no interior das paredes, mas que não pode ser visto. Elas atuam discretamente, apesar do brilho, no espaço ocupado pelo corpo do espectador que se movimenta em torno delas, enquanto suas formas tomam posse por espelhamento de tudo aquilo que as circunda. Vanderlei Lopes considera que a obra está concluída quando ela se apodera do lugar em que se localiza, e esse lugar, como imagem refletida sobre sua materialidade, passa a constituir a parte imaterial de seu conteúdo, encerrando o ciclo de sua criação/inserção.
No conjunto da obra de Vanderlei Lopes há um intenso embate com a história da arte, em especial com a tradição da escultura, tanto acadêmica quanto modernista, que é regido por uma lógica contemporânea. Esse encontro ou confronto ou atrito se dá primeiramente com a reabilitação do uso do bronze, material que requer um aparato técnico maior para a fundição e que durante séculos esteve atrelado às convenções; e, em segundo lugar, pela delicada relação de referência, como no caso do tratamento polido e espelhado dado ao bronze ativar na memória a lembrança do corpo reflexivo da Maiastra, obra criada pelo escultor romeno Constantin Brancusi (1876–1957).
De outro lado, a exploração do brilho dourado do bronze também remete a uma discussão sobre o gosto, que se define pela supervalorização do luxo e dos materiais caros. Na utilização do bronze feita por Vanderlei Lopes existe um paradoxo constitutivo, que reside no fato de a nobreza do material ser posta a serviço de temas corriqueiros e de o posicionamento da escultura recusar a centralidade convencional e a elevação da base para ocupar lugares rebaixados, alternativos ou marginais.
* A parte do fogo foi produzida em formato de jornal pelos artistas Cildo Meireles, José Resende, Tunga e Waltércio Caldas; pelos críticos de arte Paulo Sergio Duarte, Paulo Venâncio Filho, Rodrigo Naves e Ronaldo Brito; e pelo poeta João Moura Jr.