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Brasília

Siron Franco: Observando o mundo desde o centro do Brasil
Curadoria: Agnaldo Farias
13 de agosto a 04 de outubro de 2025

A exposição na Cerrado Cultural é uma oportunidade fundamental para o público de Brasília testemunhar a relevância e a vitalidade da arte de Siron Franco. A seleção de Agnaldo Farias proporciona uma jornada estética e intelectual que reafirma o lugar do artista como um intérprete agudo e perspicaz do nosso tempo. “Observando o mundo desde o centro do Brasil” busca proporcionar ao visitante uma reflexão sobre a nossa própria condição, vista através dos olhos de um mestre da pintura contemporânea.

Texto por Agnaldo Farias

Entre 27 de abril e 2 de maio, o país em transe assistiu ao Rio Grande do Sul ser devastado pelas chuvas, 478 das 497 cidades do estado sorvidas pelo engrossamento dos rios, fluxos furiosos arrastando ávidos árvores, pontes, carros, casas, animais, gentes, simultaneamente espalhando-se em violência calma, transformando pastos e plantações em lagos enlameados, extensos, interrompidos por topos dos morros e montanhas e pelas florações geométricas das coberturas das casas, galpões e prédios, empenhados em não submergir. A tragédia ressoava a frase atribuída a Antônio Conselheiro: “o sertão vai virar mar”. Sertão no Sul?! Como explicou Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte”. 

Entre tantas imagens desesperadas, sobressaiu a do cavalo Caramelo encarapitado no teto de uma casa em Canoas. Assim, paralisado, Caramelo converteu-se em signo da impotência. Pela grande tela plana da tevê instalada no interior do galpão rústico, uma antiga fábrica com pé-direito alto que lhe serve de ateliê e casa, Siron Franco não mirou o cavalo, e sim um cachorro na mesma situação. Talvez tenha se deixado atrair pela afeição ao bicho, entre todos o mais próximo de nós, e trouxe-o para a primeira pintura (Efeitos do clima, no 2) que se encontra quando se entra nessa exposição. São dois cachorros ou apenas um? Duas cabeças atarantadas, olhando para um lado e outro, um só corpo feito de água densa, entre roxo e azul escuro, submarino, flutuando no branco, como que se dissolvendo nele, como as águas descendo pelas paredes dos interiores das casas tomadas pela enchente. 

O martírio dos refugiados arriscando-se em botes e cargueiros, máquinas de afogamento invariavelmente superlotadas; os muros cercando países – A fronteira (2,4 x 5 metros) –, tolhendo os passos pelo chão que é de todos; as sucessivas quedas dos aviões – Notícias internacionais (2 x 3 metros) –, cruzes despencando do céu nas guerras travadas por todos os lados; o incêndio colossal de Los Angeles, que o artista transpôs para uma série de telas escuras, ao menos uma delas turvada de vermelho –Los Angeles, no 1 (1,9 x 2,2 metros).  

Pouca coisa nesse mundo grávido de tragédias, acidentes, iniquidades e também muita, mas muita beleza, escapa à sensibilidade de Siron Franco, como em muita coisa de Sebastião Salgado, Eduardo Coutinho, Chico Buarque e Milton Hatoum. Como a de seus colegas, sua poética é movida pelo fascínio e pelo espanto. Não importa a escala, do massacre de uma população indígena à capsula de Césio que exterminou os ingênuos goianienses que a esfregaram em seus corpos fascinados pelo brilho fosforescente que ela produzia na escuridão noturna.  

Siron Franco oscila entre a perplexidade e a indignação e também pelo encantamento, de que dão provas O homem e o clima (2 x 3 metros), tela parcialmente tributária da lembrança de sua mãe caminhando por uma trilha de brasas (e a surpresa por constatar que seus pés mantinham-se frios); Folhas de ouro (2,4 x 5,0 metros), rememoração das paredes recobertas de ouro ou ouropel, pouco importa, das igrejas, cujo brilho e pureza ele compartilha assentando-as sobre o tom roxo, soturno e magnífico que recobre as salas do piso térreo da galeria; Festa popular (2,4 x 5,0 metros), a pintura que recebe as pessoas quando sobem para o primeiro andar, construída em três partes, três setores, três tempos, com o central ocupado pelos estandartes saudando quem chega. 

O processo de Siron Franco dá-se por catarses. Cada tela, sobretudo as produzidas nas duas últimas décadas, principia em ações fortes e concisas, condensados gestuais e cromáticos, ágeis e vivos, talvez uma estratégia para contornar sua manifesta habilidade. Feita a primeira ação, ele deixa a tela à espera para só depois, quando o ímpeto inicial arrefece, quando a distância se interpõe entre ele e o que foi feito antes, retomá-la. Por isso os cancelamentos sucessivos, sintoma de sua insatisfação, como acontece em sua Coisas que nunca vi (2,4 x 5 metros), pintura em preto e branco feita com o pincel largo e chato (tecnicamente uma trincha) entintado de preto, produzindo listas horizontais desiguais, “derrapadas”, que é quando a tinta vai ficando mais e mais rala, sem recobrir a tela, perdendo a homogeneidade inicial, reduzida aos rastros de suas cerdas. Manchas e pequenos blocos azuis, amarelos e vermelhos são sufocados por essas listas pretas. Há também uma profusão de signos pretos, filetes espessos e vibráteis como peixes, girinos, espermatozoides – como saber? –, infestando a tela toda. Siron Franco, aquele que não consegue parar de ver, que vive e trabalha em regime de clausura, quase só, não fosse a presença de Wellington, seu providencial assistente, o gato Banguela e o monitor que ele utiliza como rádio, reproduzindo continuamente uma sucessão de cantos gregorianos, Siron Franco, dizia, entrincheirado num sítio situado em um município vizinho a Goiânia, no meio do cerrado, tentando saber de tudo o que acontece, não está satisfeito com o que vê, acha que é pouco, que o mundo se esvai como as paisagens que vão se sucedendo pelos vidros de seu carro. Ele, tomado pelo sentimento do mundo, tenta capturar as coisas, tem urgência nisso, mas sabe que, não obstante sua infatigável energia, trata-se de uma tarefa inexequível. O que fazer se ele vive para isso?