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Goiânia

Rebeca Miguel: Apalpar o céu com os pés
Curadoria: Texto crítico por Jean Carlos Azuos
29 de novembro a 13 de fevereiro

Entre os fios que compõem sua obra, desenhos e pinturas, há um mesmo desejo de perceber o fulgor do tempo como continuidade.

Texto critico por Jean Carlos Azuos

O tempo, nas pinturas de Rebeca Miguel, não corre: ele se espraia e se demora. Desliza entre camadas, encosta nas superfícies, volta a si como se respirasse. Há algo de líquido e ancestral nesse modo de existir — o tempo que escapa é o mesmo que se refaz nas bordas da cor. Entre a linha e a mancha, a artista urde tessituras que acolhem o intervalo, o antes que insiste e o depois que começa a surgir. O gesto de pintar se aproxima do de tocar o tempo, não para contê-lo, mas para sentir-lhe o pulso.

Na tradição ocidental, o tempo é uma seta, uma direção que parte do passado para o futuro. Mas, em sua pesquisa, a artista faz do tempo uma espiral — um corpo que gira sobre si, atravessando ontem, agora e o que virá. Nesse movimento, o passado não é lembrança distante, mas matéria viva: o que se pode encontrar de novo, o que retorna como lampejo. Entre os fios que compõem sua obra — a fotografia, o desenho e a pintura —, há um mesmo desejo de perceber o fulgor do tempo como continuidade. Os varais, as linhas elétricas, as grades e reflexos, os rastros d’água ou de luz: tudo se converte em trama. Cada traço é um sopro de permanência, um elo invisível entre mundos. A linha, em seu trabalho, não delimita: ela respira.

Na série O antes, o agora, o depois e o depois ainda mais uma vez, o tempo volta a se fazer matéria de corpo: sobre fotografias de seus próprios pés, camadas translúcidas de tinta pousam como véus de respiração, reservando e suspendendo partes da imagem. Nesse movimento demorado, o instante se espessa e a fotografia passa a se comportar como pintura, como se a artista pudesse roçar o tempo mais de uma vez. O procedimento se enlaça a uma sabedoria que vem de longe: o pássaro Sankofa, que voa adiante olhando para trás; o oráculo de Ifá, que afirma que todas as histórias já aconteceram e ainda acontecerão; a astúcia de Exu, que lança hoje a pedra que acerta ontem. Assim, as obras desarmam o tempo linear e o abrem como campo de encruzilhadas; é nesse entremeio, onde o agora se faz encontro, e não sequência, que Rebeca costura seu próprio fazer.

A artista revisita, com frequência, a criança que foi: não como memória nostálgica, mas como território de descoberta. Essa volta à infância é também um modo de ver o tempo de cabeça para baixo, como quem planta bananeira e toca o céu com os pés. O corpo invertido encontra outra perspectiva — o chão e o firmamento se confundem. A série Andanças nasce dessa mesma disposição: os desenhos mapeiam percursos cotidianos por Belo Horizonte — entre casa, universidade, ateliê e rua —, mas também deixam entrever outras geografias que se inscreveram na artista ao longo do tempo. Essas rotas, feitas de distâncias e de atravessamentos sutis, revelam um modo de caminhar que permite à experiência assentar-se como sedimento. Cada deslocamento se torna traço de presença, uma forma de tempo estendido no espaço, e é dessa escuta do movimento que Rebeca chega à Cerrado Galeria, trazendo consigo os lugares que a formaram e aqueles que, em sua trajetória, ainda se abrem. Caminhar transforma-se, assim, em uma maneira de recolher o que sussurra entre um ponto e outro — e também de acolher as veredas que a conduzem a novos encontros.

Nas cores de Rebeca, o mundo desacende da aparência e se acende em outros tons. As coisas não se mostram como são, mas como se conformam. Há um pensamento cromático que também é temporal: a cor como resíduo, como rumor, como acontecimento. Em suas obras, o tempo se oferece não como passagem, mas como permanência em movimento. A artista nos convida a escutar o instante como quem mergulha o ouvido n’água: a perceber que o agora é um território habitado por muitos tempos — o que veio, o que fica, o que ainda virá.

Apalpar o céu com os pés é aprender a sentir o tempo por outro limo: não aquele que mede, mas o que atravessa; o tempo que se percebe com o corpo inteiro, quando o olhar se desprende do horizonte e encontra o chão do invisível. Na vertigem da inversão, a artista encontra equilíbrio e nos ensina que talvez o gesto mais radical seja este — permanecer de ponta-cabeça, com os pés no céu e as mãos na terra, sustentando o tempo enquanto ele escorre, vivo, entre os dedos.