Brasília

Primeira exposição de Mariana Palma em Brasília, “A invenção do visível” foi concebida com o objetivo de oferecer ao público um recorte de sua produção atual. São aproximadamente 30 obras – pinturas, fotografias, aquarelas e uma instalação em tecido translúcido – que funcionam como uma carta de apresentação de seu repertório e de sua trajetória.
Toda arte é erótica
Adolf Loos
Para adentrar a poética resplandecente de Mariana Palma, devemos atravessar a opacidade da própria pintura. Não se trata somente de enfrentar a densidade histórica do médium privilegiado da Arte, cujas imagens, ao se dispersarem e reconfigurarem, erigiram parte significativa da nossa cultura visual. É preciso, sim, penetrar as camadas de tinta que ali repousam na ardilosa tarefa de articular imagens para compreender o continuum da/na prática da artista. Assim, podemos perceber a consistência de suas pinturas, que são menos tributárias do acúmulo matérico do que da sobreposição de elementos. Estes, por sua vez, nunca obstruem totalmente a visão daquilo que encobrem. Em seus quadros, nada está, de fato, velado. Sua pintura não dissimula, não corrige, mas revela. Guia-se pela transparência. Produz formas diáfanas, assim como os tecidos em voil impressos com cianotipias elaboradas pela artista em seu ateliê e os quais cruzamos para chegar à galeria. Eis uma grata metáfora expositiva.
Suas obras, ao recusarem a nomeação – jazem sem título –, dificultam a tarefa de individualizá-las discursivamente. Temos que entendê-las com um prodigioso corpo de trabalho no qual cada manifestação só pode ser um fragmento autônomo de um amplo universo visual, que vem sendo orquestrado desde o início dos anos 2000. As composições das aquarelas reverberam em fotografias, assim como a aquosidade da primeira permeia a segunda pelo uso, por exemplo, de leite ou óleo de carro queimado que envolve os objetos. As hibridações de Palma, da qual os dois médiuns são veículos, produzem surpresa ao reunir diferenças. Bem humoradas, são sintéticas como haikais. Apontam que o realismo, na arte, oferece muito mais ao mundo ao nos conferir a possibilidade de imagear uma outra natureza, na qual conchas desembocam em plantas; flores, em legumes; frutas, em animais. O estranhamento, lembramos, só pode advir do banal.
Todavia, nem paisagens, nem naturezas mortas são suas imagens. Até porque, a cornucópia de elementos naturais e artificiais representados em suas composições só podem existir plenamente na virtualidade do universo conjurado por sua prática. Suas pinturas são verdadeiros paraísos artificiais, tais como o Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch; a Brasília, de Lúcio Costa; e muitos dos descansos de tela que habitam nossos computadores. Nelas descobrimos arabescos em profusão, panejamentos invejáveis, e babados, dobras, padronagens, cores e formas que, no espaço que as suporta, só podem fulgurar como recortes de uma visibilidade excedente. A amplitude – virtual e concreta – de sua pintura abraça nosso corpo, pois transcende a ele – física ou metafisicamente.
Enfrentando uma pintura de Palma, nós podemos imaginar seu crescimento infinito. Suas telas aspiram ao ambiental. Não as habitamos, contudo, somente com os olhos. Sequer suas composições se guiam pela perspectiva, convidando a visão a se aprofundar. Pelo contrário, sua organização, ainda que pela sobreposição de planos – como ocorre em algumas fotografias e pinturas e, literalmente, nas fotografias em voil esticadas sobre pinturas –, se faz pelo embaralhamento. Desse modo, a artista confere dinamismo interno à composição, cuja proficiência de imagens urde uma trama que facilmente conduziria à estase. A diversidade de escalas anula a possibilidade de um referencial fixo, que não o de nosso próprio corpo.
Resulta dessa articulação, uma dança sedutora. Na tentativa de apreender seus mistérios, devemos nos aproximar e afastar, descobrindo, a cada momento, um novo convite ao toque, devido a riqueza de suas texturas. O brilho de suas pinturas incendeia o olhar. Ofusca sem cegar, a sua luminosidade farta. A transparência das formas, revela que superfícies podem ser profundas. E não há pecado em nos deleitarmos no superficial, tal como a tinta, pairando sobre a água, pode se deitar sobre o papel para originar iridescentes marmorizações. A técnica, empregada na preparação dos fundos das telas, introduz o acaso, cuja reação será a organização composicional.
A sobreposição de formas diferentes nos remete a colagem como procedimento. No entanto, no caso de Palma, parece mais sensato falar de sampleamento, ou mixagem de imagens encontradas no arquivo infinito da internet. É nesse espaço de vertiginosa produção de imagens que a artista lança sua rede para nela recolher conchas, algas, folhas e peixes. Nos alicerces de sua prática existe um colecionismo à la Pinterest, um acervo de imagens constituído no Instagram. A partir desses fragmentos do mundo que nos alcançam pela tela, a artista elege elementos para suas pinturas. Estas surgem como articulações da cultura visual na qual estamos imersos. São depurações de imagens que velozmente nos atravessam.
Suas pinturas, não se pode negar, frutificam a cultura visual da era digital que lhes serve de solo. Ao mesmo tempo, resistem a ela. Primeiro, ao contradizer sua disposição principal, pois tendem à horizontalidade do cinema, mais do que à verticalidade dos smartphones. Mas também por recorrerem a um método antiquado de fazer imagens. Suas cores saturadas, porém, fazem jus a um tempo também saturado de informação, no qual tudo visa capturar nossa atenção.
Palma pinta em alta definição (high definition). Suas formas possuem uma nitidez pristina, um brilho singular que parece irradiar do quadro. Sua transparência faz rememorar a luz cotidiana das nossas telas digitais, ou pensar na persistência das imagens na mente, mesmo quando passamos a outras. Mas ao deslocarmos o olhar do horizonte da atualidade para verticalmente adentrar a história, identificamos em Palma a sobrevivência de uma pulsão pelo ornamento, no rastro de Beatriz Milhazes e do movimento Pattern & Decorations, nos Estados Unidos. Mas podemos recuar até Henri Matisse, em direção à Art Nouveau e ao Arts & Crafts de William Morris. Pode-se ir mais além, inclusive. Afinal, no mundo, abundam os ornamentos. Nos deparamos com eles na arquitetura, em toalhas de mesa, papeis de parede, vasos, adornos corporais e sobre a pele, como tatuagens ou na indumentária. Constituem nosso imaginário devido a sua cotidianidade e o modo como a enriquecem. Eles introduzem, no mundo, o deleite e o gosto pelo fazer manual.
Infelizmente, aquilo considerado decorativo, ou ornamental, seguidamente foi identificado como inferior por certa parcela da intelectualidade artística desde a modernidade, por ser visto como um estilo menos elevado ao não ambicionar grandes temas ou tensionar o campo da visualidade, tendo em vista que incitava mais o prazer escópico do que as derivas intelectuais. Por isso, em Ornamento e Delito (1908), o arquiteto vienense, Adolf Loos defendeu enfaticamente o fim da ornamentação na arte, design e arquitetura, por ver nele um desperdício da força de trabalho e dos materiais.
O progressismo de Loos é o mesmo do capitalismo industrial, dirigido por um ideal de produtividade que tem se revelado insustentáveis. O que, para Loos, era o problema do ornamento, na realidade, é sua potência: sua relação com o erótico. A ornamentação convoca ao prazer, ao exercício da livre criatividade que não precisa adquirir um sentido no mundo, que não o das sensações que pode provocar. Palma, então, atua na reabilitação da artesania em meio à tecnocracia. A lógica do ornamento que subjaz em seus trabalhos, não faz deles algo decorativo. Afinal, suas obras não foram idealizadas para adornar um espaço. Elas instituem seu próprio espaço. Não possuem função, senão a de reintroduzir a beleza em um mundo que clama pelo apocalipse. Mesmo com devaneios de fim, Palma revela que o meio, seja o suporte – médium – ou o agir sobre ele – o trabalho – não precisam ser capturados pelas demandas do utilitarismo, mas podem existir em gozo.
André Torres