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Brasília

Manuela Costa Silva: Encantar a Passagem
Curadoria: Texto crítico por Paula Borghi
18 de outubro a 22 de novembro

Suas criações, entre pinturas, esculturas e instalações, refletem esse mergulho onírico, onde a morte, os encantados, a espiritualidade e os animais ganham forma e presença.

Texto crítico por Paula Borghi

É pelo sonho que Manuela Costa Silva muitas vezes primeiro vivencia seus trabalhos, fazendo da experiência onírica uma experiência real. Assim como em muitas culturas, a artista compreende o sonho como um tempo/espaço para ir de encontro com determinados conhecimentos e imagens que somente são possíveis de serem acessados quando não se está em estado de vigília. A viagem onírica faz com que ela se aproxime da morte, dos encantados, da espiritualidade e dos animais que são retratados em suas pinturas, esculturas e instalações.   

A respeito de uma das muitas compreensões do sonho enquanto experiência do real, quando um Yanomami dorme à noite, por exemplo, seu corpo (pei siki) fica na rede, enquanto sua imagem (pei utup?) viaja e experimenta os eventos desejados por outros, afetando o corpo daquele que dorme. Em paralelo, é possível dizer que o corpo de Manuela Costa Silva fica na cama enquanto sua imagem experimenta eventos desejados, sobretudo, pelos animais e pelos espíritos das mulheres de sua família, inspirando-a em sua produção artística.  

Com todas as diferenças que há entre seu sonhar e do povo Yanomami, próprias do modo de vida de cada qual, é por meio da interpretação das mensagens que chegam quando ela está neste estado, que se faz possível apreciarmos os trabalhos presentes em sua primeira individual na Cerrado Galeria. O sonho aqui atua como inspiração criativa, aprendizado, oráculo, expressão e portal de acesso tanto ao  inconsciente, como ao mundo espiritual e artístico.  

Alguns de seus trabalhos vieram de imagens recebidas diretamente nos sonhos, como o círculo de cabeças, os pés andando em volta da cabeceira da cama, o encontro das águas, a cabritinha de três cabeças e o cisne negro. E muitas vezes, quando as imagens não surgem da viagem onírica, nota-se a presença da cama como enunciado. A cama, um objeto capaz de suspender o corpo e colocá-lo num espaço entre a terra e o céu, atuando enquanto um meio para o sonhar. 

Curiosamente, uma das imagens presentes na mostra, que pode ser lida como o encontro das águas, foi sonhada por mim anos antes de conhecer a artista. Nesta pintura, É preciso duas cabeceiras para se fazer uma ponte, a mensagem chegou a ela numa conversa com seu pai, enquanto ele explicava que era preciso duas cabeceiras para fazer uma ponte sobre o reguinho d’água que passava em sua chácara. A explicação entrou dentro dela, que depois se lembrou desse lugar onírico em que as águas se encontravam, que por sua vez também foi sonhado por mim.  

Não apenas nesta pintura, mas em outros trabalhos, nota-se que a cabeceira da cama é a própria ponte relatada por seu pai. De modo que seu sonhar, ora vem do próprio ato de dormir, ora vem das palavras que a fazem ter sonhos em vigília. São frases  de encantamento ditas por seu pai, poesias de sua avó, palavras sussurradas ao seu ouvido por entidades, entre outras. É neste estado, de estar meio acordada e meio dormindo, que a maioria das mensagens/ideias chegam para a artista.  

E da mesma forma que é possível sonhar acordada, também é possível morrer estando viva. Trata-se da morte enquanto um lugar de passagem, de um barco que navega entre o mundo dos vivos e dos mortos, podendo este ser manifestado pela figura mitológica de Caronte; o barqueiro que transporta as almas dos mortos através do rio para o submundo. O barco e a cama são meios utilizados por ela para atravessar mundos, para encantar a passagem – como sugere o próprio título da mostra.  

Assim, a artista fala sobre a morte não por um aspecto negativo, como comumente é abordado, mas pelo contrário: “É necessário morrer para poder nascer outras coisas dentro de si”. Uma vez mais, a infância com as avós (sendo uma delas falecida há mais de duas décadas), a presença da espiritualidade (desde influências mitológicas da Grécia Antiga, até sua vivência na Umbanda) e dos que vieram antes (de seus ancestrais), se espalham por toda a exposição de forma tão natural como a água que flui pelo rio.  

Com múltiplos significados, o ato de sonhar na produção de Manuela Costa Silva pode ser interpretado como um dos pontos de partida para a mesma imaginar, criar seus trabalhos. Como se a todo momento sua obra nos dissesse que não há como conter o sonho, evitar a morte e tampouco guardar a água na palma da mão. Coisas tão essenciais e ao mesmo tempo tão complexas. Eis aqui uma artista sonhadora, que com metáforas visuais nos lembra que não há sentido em separar os aprendizados do sonho onírico e em estado desperto, dos vivos e dos encantados.