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Brasília

Genor Sales: O tempo é Rei
De 24 de maio a 09 de agosto

Em sua primeira exposição individual, Genor Sales exibe 31 obras produzidas entre 2023 a 2025, nas quais propõe reflexões que se desdobram de sua pesquisa feita em residência no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes. Em destaque estão as aquarelas da série Dos Peixes, que propõe uma discussão poética sobre ecologia e segurança alimentar, além de denunciar o genocídio nutricional da população negra.

Pensa que a cidade é um caminho navegável.

Mas um caminho de água. Olha para a cidade como uma bacia hidrográfica: mananciais, afluentes, fluxos e correntezas. Olha para isso e vê a vida que acontece aonde a água chega. O que a água carrega e faz brotar.

Mesmo que a cidade seja terra seca, asfalto quente, olha para ela e pensa: é caminho.

Não porque de fato seja, mas porque precisa ser. E precisando ser, é.

Genor Sales é o artista que opera essa transformação. Caminha pelas cidades e vê para além da escassez feita de concreto e massa de gente, de trabalho, de falta. Ao se ver um peixe fora d’agua carrega consigo um meio de navegar e reconhece cidades invisíveis.

O meio de navegação que atravessa essa exposição é a aquarela. Técnica milenar, com registros em diferentes culturas, esse material à base de água e pigmento mineral foi essencial para estudos botânicos e cartográficos durante o Renascimento e é considerada desde o século XVIII como uma linguagem autônoma.

Na história da arte brasileira talvez a produção mais popular nessa linguagem seja a de Jean-Baptiste Debret. Debret aqui chegou com a comitiva que tinha a missão de fundar a Academia Imperial de Belas Artes e trazer consigo o gosto artístico europeu e implementar métodos de ensino e difusão de uma cultura visual nesse território. Além dessa função esperada, assim como outros artistas viajantes, o artista francês criou uma série de aquarelas em que descrevia, para olhos europeus, o que seria a vida no novo mundo.

Plantas e animais figuraram seus álbuns e estudos, mas há algo que Debret retratou com grande entusiasmo: a vida no ambiente urbano. Para ele interessavam os tipos que caminhavam por entre as ruas. Os registros desses tipos figuraram durante séculos como testemunhos de uma realidade e lembretes de uma sociedade, ainda que colorida, muito violenta. O chão não era asfalto, mas havia ali uma escassez feita de pés descalços, de palmatória, castigos e corpos marcados que se refletem na dureza da vida no espaço urbano de hoje.

Quando Genor cria manchas de água e pigmento em papel, ele atua poeticamente com a técnica que partilha com gerações de artistas. Se apropria da aquarela como meio de retratar a si e ao outro. Assim, ele toma uma linguagem histórica e a desenvolve criticamente para redefinir regimes de representação e a natureza daquilo que chamamos de tipos.

De maneira muito consciente Genor Sales enfrenta o papel com o mesmo corpo que percorre a cidade e vê nela possibilidades de existência e poesia. Em seu trabalho somos tomados por um sem-fim de escamas/gotas que se multiplicam e contam histórias que escutamos e vivemos em todos os lugares. Todos os seus trabalhos partem de uma música, de um hábito, de algo que se relaciona com a medida da casa e, por isso, com a medida do mundo. O limiar que separa o público e o privado é o corpo e os caminhos que esse desbrava.

Podemos de uma maneira direta perceber o trabalho de Genor com as chaves que ele, de maneira muito didática nos apresenta a seu método: o peixe como metáfora para se discutir ecologia, segurança alimentar e genocídio nutricional. Mas há o que enxergar além. Além da indiscutível habilidade e intimidade com a técnica da aquarela, além do estudo e da dedicação com as demais linguagens, como artista trabalhador e estudioso que é, Genor cria um vocabulário para si.

Em tempos em que o sistema de arte, assim como o mundo, exige pressa. Em tempos em que deslocamentos e fronteiras se reafirmam como impossibilidades, Genor Sales celebra o tempo rei. Tempo de memórias, heranças e de reflexões sobre aquilo que ocupa nossos dias e que dá significado à vida. E ao encontrar esse tempo outro, de modo tão particular, o artista percorre um caminho de transformação: toma a cidade pra si e faz dela um rio.

Lorraine Mendes