Menu

Goiânia

Fernando Lindote e o encontro do imperador e da imperatriz com as araras, os papagaios e os macacos perto do ovo da serpente 
Curadoria: Divino Sobral

Apresenta obras de um dos mais importantes pintores brasileiros da atualidade: Fernando Lindote. Produzidas nos últimos treze anos, as pinturas e esculturas que integram a mostra foram criadas a partir da reflexão sobre a cultura, elaborações produzidas pelo encontro de repertórios visuais e narrativos de distintas matrizes.

A exposição reúne um conjunto de pinturas e esculturas de Fernando Lindote, gaúcho nascido em 1960 na divisa com o Uruguai e radicado em Florianópolis desde 1983. Autor de obra singular, é um dos mais importantes pintores brasileiros da atualidade, vivendo há mais de quatro décadas inteiramente entregue ao desenrolar do seu pensamento visual e ao fluxo do seu ofício criador. 

Precoce, Lindote, aos 11 anos de idade, publicou pela primeira vez uma história em quadrinhos no jornal Zero Hora de Porto Alegre. Aos 13 anos, profissionalizou-se como chargista, tendo trabalhado em jornais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina até 1983. Já naquela época, desenvolvia uma linguagem gráfica para cada assunto abordado. O modo livre de operar com os códigos visuais e a facilidade para tratar os problemas do mundo usando o humor permitiram ao artista, no decorrer de seu processo de amadurecimento, trabalhar com alto grau de investigação, porém sem se deixar atar pelas amarras limitadoras de uma única linha de pesquisa. Para ele, aprofundamento e distensão andam juntos. Seu olhar arguto, amplo e crítico o levou a desenvolver uma obra inteligente e séria, mas, ao mesmo tempo, capaz de rir de si mesma. 

Sua instigante trajetória nas artes plásticas, iniciada nos idos de 1979-1980, é marcada pela infidelidade a um estilo; pela dúvida a gerar sucessivos questionamentos e consecutivos deslocamentos; pela metamorfose da linguagem; pela experimentação com distintas categorias; pela exploração de materiais inusitados; e pelo embate de seu corpo com a materialidade que manipula. Por isso, é marcada, sobretudo, pela inconformidade com padrões fixos e pelo compromisso com a invenção poética/formal. 

A exposição reúne obras produzidas a partir de 2012, mostrando um pouco da inquieta busca empreendida por Lindote durante os últimos treze anos. Suas complexas pinturas e esculturas se impõem como trabalhos engendrados pela reflexão sobre a cultura, elaborações produzidas pelo encontro de repertórios visuais e narrativos de distintas matrizes. 

 As pinturas são estruturadas por intertextualidades. Com isso, elas remetem, ao mesmo tempo, a várias referências superpostas em camadas, ora explícitas, ora meio apagadas, ora confundidas. Desse modo, criam atmosferas cromáticas enigmáticas que impregnam os ambientes abarrocados e teatralizados (mesmo quando de aspectos naturais), nos quais se destacam a opulência das formas, a sensualidade das texturas, o brilho ou a surdez das cores submetidas ao contraste enigmático da luminosidade com a escuridão — que ordena a distribuição das obras nas duas salas da galeria. De intrincada fatura, as pinturas podem operar com a subversão das técnicas e de suas funções lidando com diferentes conformações da matéria pictórica: a tinta pode ser empastada, diluída, viscosa, transparente ou opaca, e a pincelada pode ser ágil, ligeira, lenta, meticulosa. Ao fim, independentemente do assunto, a pintura se revela embevecida consigo mesma e pronta a seduzir o olhar do espectador.  

As obras de Fernando Lindote colocam em convivência representações vindas de lugares diferentes e, de certa maneira, configuram alegorias de cunho pós-colonial. Apropriando-se da história da arte ocidental, fazem referências a diferentes épocas, origens e tendências estéticas, criando outras representações. Elas reveem, por exemplo, Frans Post (1612-1680) e a natureza tropical e exuberante do Brasil. A figura da Banhista de Valpinçon, obra do pintor neoclássico Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), é transformada em Yara, a deusa das águas para os povos originários brasileiros. O ambiente liquefeito inspirado pelas Ninfeias do impressionista Claude Monet (1840-1926) abriga a citação à escultura ficcional de Maria Martins (1894-1973). O tema clássico das Três Graças é desconstruído com humor.  

Algumas representações aparecem tanto em pintura como em escultura, como é o caso da citação ao papagaio falante criado pelo cartunista e ilustrador carioca J. Carlos (1884-1950), que inspirou a criação do personagem Zé Carioca, lançado em 1942 pelos estúdios Walt Disney. Lindote desenvolveu um corpo tridimensional para o papagaio de J. Carlos, influenciado pela polidez e pelo brilho da Maiastra de Constantin Brancusi (1876-1957). Este mesmo papagaio aparece pintado no topo do cetro segurado pelo Imperador Macunaíma, que porta na cabeça a coroa do segundo Imperador do Brasil. O corpo de Macunaíma é produzido pela mistura de referências extraídas de Goya (1746-1828) e do retrato de Dom Pedro II pintado por Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879). De outra forma, ocupando o espaço tridimensional, as formas planares dos bicos de Zé Carioca, do papagaio de J. Carlos e da arara azul Blu, personagem do filme Rio do cineasta Carlos Saldanha (1965), são enlaçadas formando uma escultura que cita as obras da série Bichos criados por Lygia Clark (1920-1988). Se, no século XVI, o papagaio foi usado como símbolo exótico do continente americano recém-descoberto, a partir do século XX, tornou-se um problemático emblema de brasilidade, divulgado em contextos nacional e internacional. São camadas sobre camadas de referências plásticas e históricas, reais e ficcionais, articuladas em função do pensamento crítico.     

Nos trabalhos de Fernando Lindote, predomina um clima fantástico minuciosamente construído. Nas pinturas em que aparece a figura do macaco, há o estranhamento provocado pela condição de metáfora dada pelo artista ao primata, que, com gestos e posturas humanas, protagoniza cenas de grande beleza, teatralmente pintadas com a exploração de claros e escuros, aplicados com requinte nas paisagens de fundo, e que parecem misteriosamente encenar os grandes dramas da humanidade, como a finitude da existência, a busca por conhecimento e o cansaço da cultura.   

O aspecto fantástico é ampliado com o descolamento da realidade e com uma névoa de sonho que passa a cobrir as figurações e narrativas das pinturas de Lindote. Tal traço pode ser mais bem observado sobretudo naquelas obras que dialogam com as crenças e mitos da cultura popular brasileira, especialmente de derivação indígena, como Yara, Curupira e mesmo Macunaíma, divindade da cosmogonia do povo Macuxi habitante do Monte Roraima, no extremo norte do país, apropriada pelo modernista Mario de Andrade (1893–1945), a quem serviu de inspiração para a criação de Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. A fusão de mitos ancestrais do país com mitos de extração clássica e europeia cria situações inusitadas, como a Yara neoclássica ou o Curupira de rastro enganoso unido ao sátiro grego Mársias; ou ainda a citação ao mito de Sísifo, também grego, apontando-nos que o artista é aquele ser condenado a repetir, cotidiana e incessantemente, o ato da criação. 

Nas pinturas de Lindote, o elemento poético se estende em direção aos conflitos da sociedade até alcançar a esfera política. A opulência dos recursos pictóricos, os acentuados contrastes entre luz e sombra, a riqueza de materiais representados e a fartura de detalhes empregados na elaboração da Imperatriz antropófaga e do Primeiro Imperador reforçam a encenação do teatro do poder, mostram a tipologia dos gestos e dos figurinos absolutistas, materializam a força do imperialismo para se apoderar de suas margens insurgentes.  Em uma pintura de formato redondo, de aparência orgânica e estranhamente povoada por ovos de serpente, olhos remelentos, fístulas e abscessos, Lindote representa sua interpretação alegórica da história recente do Brasil, quando o lema “Ordem e progresso” passou a indicar a perversão do poder, o desvio de sua função e o desejo fascista de dominar as minorias, enquanto a noção de “progresso” foi desvirtuada pelo movimento de retrocesso.  

Divino Sobral