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Brasília

Farnese de Andrade: o tempo, a memória e os afetos
Curadoria: Divino Sobral

Reúne obras de Farnese de Andrade, um dos nomes mais singulares da arte brasileira, raramente exibidas ao público. Em paralelo, apresenta trabalhos de artistas que dialogam com o seu universo criativo.

Farnese de Andrade (Araguari/MG, 1926–Rio de Janeiro/RJ, 1996) é um artista singular no panorama da arte brasileira das quatro últimas décadas do Século XX. Nascido em cidade do Triângulo Mineiro, produziu obras contaminadas pelos ambientes interioranos, marcadas pelo clima fechado, pela manifestação de afetos abafados, pela angustiada solidão existencial e pela sexualidade mantida sob repressão religiosa. É autor de obras complexas, enredadas na fabulação sobre os enigmas que cercam tanto a criação da vida e quanto a consumação da morte.

Entre 1945 e 1948, morando em Belo Horizonte, estudou desenho com Alberto da Veiga Guignard, que ensinava rigorosamente o valor expressivo da linha contínua, firme e precisa. De 1959 a 1961, já residindo no Rio de Janeiro, aprendeu as técnicas da gravura nos cursos ministrados por Johnny Friedlander e por Rossini Perez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O seu peculiar talento aliado a essa consistente formação levaram-no a desenvolver a primeira fase de sua produção, criando obras nas modalidades do desenho e da gravura, e com elas conquistando espaço no mercado e afirmando seu nome no circuito artístico ao participar sucessivamente de cinco edições da Bienal de São Paulo (1961, 1963, 1965, 1967, 1969) e integrar a XXXIV Biennale di Venezia (1968), importante mostra realizada na Itália. Durante a década de 1960 e os primeiros anos da década seguinte, a produção de Farnese de Andrade se consolidou, sendo selecionada e premiada pelos principais salões do país e exibida em mostras de arte brasileira realizadas no exterior.

A exposição apresentada pela Galeria Cerrado reúne o conjunto de sessenta e oito obras, entre pinturas e assemblagens, produzidas de 1964 a 1996, ano de falecimento do artista, proporcionando o dilatamento do olhar sobre sua produção ao   trazer obras que raramente são exibidas ao público, mostrando o lado mais tradicional  de seu trabalho dedicado ao suporte bidimensional e ao uso das técnicas mistas com tintas, e exibindo obras figurativas nas quais ele se voltava para as questões relativas à figura humana.

A exposição apresenta duas pinturas de colorido comedido abordando as máscaras das relações sociais, e mais uma dezena de obras, entre retratos de mulheres ou de casais de namorados, revelando como os assuntos amorosos interessavam ao artista que viveu em desencanto com o amor.  Emergindo da densa escuridão que domina os ambientes de fundo, suas singulares figuras são impregnadas ora de misteriosa teatralidade, ora de sensualidade contida e melancólica.  Datados de 1964 a 1982, estes trabalhos noturnos eram considerados pelo artista como pinturas, pois a mancha era um dos recursos plásticos utilizados na fatura.

O agrupamento mais volumoso no conjunto da exposição é formado pela produção tridimensional do artista. Em 1964, Farnese de Andrade criou seu primeiro objeto – modalidade visual amplamente explorada na década de 1960 como alternativa aos procedimentos tradicionais de criação de obras tridimensionais ou em tensão com o relevo. Os primeiros objetos, também denominados assemblagens, foram executados com materiais coletados nas praias, desgastados pelo tempo, pelo uso e pela água salgada. Depois outros materiais passaram a ser agregados às montagens, promovendo encontros de grande beleza e forte impacto emocional. Com o passar dos anos, este segmento de sua inquietante produção adquiriu visibilidade maior que as linguagens tradicionais, as quais o artista continuou trabalhando.

Os três objetos mais antigos aqui presentes datam de 1966 – ano em que ocorreu a primeira exibição das assemblagens do artista – e apresentam o uso dos suportes de madeira envelhecida, das bonecas queimadas e das capsulas de vidro.  O inventário dos materiais utilizados em suas obras registra objetos marcados pelo passado, apontando para feridas e traumas contidos nas fundas gavetas da memória. Há um memorialismo no emprego de peças de antiquariato ou ferro-velho, partes de mobiliário, pedaços de madeira, fotografias herdadas de seu tio, cartões postais, esqueletos de animais, imagens religiosas, ex-votos, bonecas estranguladas, utilitários domésticos, recipientes de vidros e blocos de resina de poliéster – material agregado ao seu repertório em 1967 e usado para imortalizar objetos e imagens, sendo o artista pioneiro em seu uso artístico no Brasil.

As assemblagens criadas por Farnese de Andrade são de certa forma uterinas e exploram as relações entre interior e exterior. São recorrentes referências à maternidade, à fecundação, ao óvulo, ao parto. É frequente o uso de caixas, oratórios, urnas e gamelas, objetos feitos pelas mãos do povo e ativadores do jogo entre dentro e fora, que são empregados para guardar e conservar, reservar e preservar. Com eles o artista cria uma poética desconcertante, reveladora dos assombros do seu inconsciente, mas portadora de lampejos políticos, provocadora de estranhamento e fascínio àqueles que por ela se deixam conduzir.

Diante das assemblagens de Farnese de Andrade, produzidas algumas vezes ao longo de muitos anos ou de quase duas décadas, sente-se a experiência da duração provocada pela passagem circular do tempo unindo passado, presente e futuro, criando uma memória que permanece tensionando lembrança e esquecimento, resistindo ao desaparecimento, evocando afetos represados, traumas infantis, perversidade familiar, punição religiosa, confrontando a fragilidade humana com a finitude.

Divino Sobral