Brasília/ DF
A exposição tece uma conversa entre dois artistas com vozes de timbres peculiares, aproximados e distanciados ao mesmo tempo, provenientes de diferentes origens e gerações, nascidos em cidades do interior do Brasil, e que investem suas obras de imaginários próprios, conectados, de alguma maneira, com essas localidades e desvinculados das tendências predominantes nas narrativas hegemônicas da história da arte. Ambos têm seus pensamentos plásticos guiados pela intuição, escavam em profundidade o inconsciente e reelaboram as memórias individuais e coletivas enquanto se entregam ao ofício como quem se entrega à devoção, demonstrando dedicação monástica ao fazer manual. Um trabalha sobre a matéria bruta e quase indomável vinda da natureza; o outro, sobre a matéria processada e domesticada pela história.
Suas obras potencializam a linguagem figurativa, mas não pelo viés do código formal erudito, acadêmico ou modernista, e sim pela renovação das conexões com a chamada arte ‘popular’, produzida pelo povo com o saber do povo. Nascem de arqueologias poéticas que lidam com a tradição das representações visuais atávicas ou ancestrais, e adquirem pregnância pela potência expressiva do gesto que talha na pedra figuras de força descomunal, ou que grafa sobre o papel figuras que expressam delicada afetividade. Diante de seus trabalhos constatamos a vocação desses artistas para permanecer no âmbito de uma categoria, sem se contaminar com outras, mas encontramos dificuldades de fazer categorizações e acomodações conceituais a respeito de suas figurações, pois a simplicidade das suas figuras é obtida ao preço de muito esforço e depuração, resultam de uma síntese assentada na verdade existencial, nas expressões sinceras de seus sentimentos. São figuras gestadas pela pulsão criadora dos dois artistas, impondo-se sobre materiais e símbolos, sintaxes e significados, formando narrativas que refletem suas próprias vivências, seus meios de origem, suas relações com o corpo, seus métodos de trabalho e suas mitologias particulares.
Nascido em Poxoréu e residente em Rondonópolis, no Mato Grosso, o escultor Paulo Pires é um artista experiente que começou sua produção artística aos 14 anos entalhando figuras na madeira. A partir dos anos 2000 elegeu como matéria-prima de sua criação as pedras retiradas dos municípios de Rondonópolis e de Pedra Preta, que possuem propriedades cromáticas apresentando tonalidades de ocres oxidados, avermelhados rajados de subtons terrosos, além de pretos e de brancos incomuns. O artista domina a matéria arenítica, mas também é dominado por ela. Com seus instrumentos de trabalho se ocupa em extrair cuidadosamente o excesso de matéria para desvelar a carne contida na pedra bruta, dando movimento à sua musculatura e às suas veias-veios e conferindo-lhe vida e espírito.
Observador de grandes grupos humanos, Paulo Pires dialoga com a pedra e é dessa relação com o material que surgem as esculturas compactas que lidam com massa, volume e peso considerando na perspectiva técnica-física a ação da gravidade e na perspectiva simbólica a humanização da pedra – tradição cara à história da escultura. Assim, as metáforas dos sentimentos humanos, como a solidão ou o consolo, são arrancadas da pedra lavrada. Suas obras – de poesia dura, seca e áspera – apresentam questionamentos sobre o mundo, tendo sempre a figura humana como motivo principal. A figura feminina tem ressaltada a rotundidade enquanto a masculina é mais achatada. Na produção de Paulo Pires as figuras se abraçam, se enroscam, se enlaçam, se amontoam, se sobrepõem; comportam-se como se formassem uma grande união e tomassem a mesma causa; fazem referências à ambição que move o trabalho do garimpo e da mineração, ou à competição ou à colaboração entre corpos; mostram a energia do desejo erótico nas formas dos encontros amorosos e sensuais. Polissêmicas podem falar de conversas, namoros, reuniões ou batalhas.
O desenhista Estêvão Parreiras, nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, e reside em Goiânia, Goiás. Sua obra é profundamente enlaçada à cultura popular, à religiosidade e à paisagem de seu estado de origem. O artista utiliza ao mesmo tempo materiais destinados à pintura e ao desenho elegendo o papel como suporte. Os materiais assim como as cores possuem funções específicas em seu repertório simbólico, desta maneira rocha, madeira, cerâmica e água são representadas com uso de lápis de cor, giz de cera, guache, tinta a óleo ou aquarela e com paleta de ordem naturalista, a camiseta vermelha vestida por suas figuras é associada ao manto rubro dos santos mártires do catolicismo. A fé, a devoção e a fantasia são conteúdos presentes no interior do trabalho do artista que desde criança frequentava com sua família locais de romaria do catolicismo popular, onde as salas de ex-votos são frequentes e narram situações milagrosas.
Quase um personagem, a figura masculina representada por linha econômica, esquemática e de aspecto inculto que povoa os desenhos de Estêvão Parreiras tem sua estrutura representacional inspirada nos ex-votos, apesar de haver um processo de identificação entre o autor e a figura. Nas fabulações do artista surgem a energia do sagrado se expandindo no espaço, a aparição mística dos anjos, a iconografia da paixão, a aura emanando dos corpos, os corpos que se desdobram em outros corpos, a complexa simbologia de animais como cobras e aves e suas hibridações com o humano, as montanhas como locais de elevação, os barcos como meios para travessias às vezes absurdas e os rios e raios que nascem das bocas como vômitos. Utiliza também o recurso do texto como elemento plástico para expressar ideias poéticas que ampliam o leque semântico dos desenhos.
A curadoria optou por fazer aproximações entre os dois artistas estabelecendo conversações inesperadas, mesclando trabalhos de formatos e escalas diferentes, criando células temáticas, no intento de mostrar como o conjunto permite refletir sobre questões necessárias ao debate sobre a arte brasileira contemporânea produzida no centro e na borda do Brasil.