Goiânia

A exposição “O corpo quer fecundar a terra” é uma mostra individual que evidencia como Estevão Parreiras cria uma iconografia própria, cruzando referências religiosas com memórias afetivas e paisagens.
A intrincada simbologia da obra de Estêvão Parreiras tem origem na fé católica que se enraizou profundamente no imaginário popular brasileiro durante a colonização. Ela surge das nervuras da memória afetiva do artista, que é guardiã de práticas religiosas herdadas de seus familiares ou vividas durante a infância em salas de milagres repletas de coleções de ex-votos com agradecimentos ao sagrado pela superação de dificuldades; surge, também, da lembrança das formações montanhosas e dos vales dos rios que dominam Pouso Alegre, cidade do interior mineiro em que nasceu. Processada no engenho da subjetividade, associa arte e fé, cultura e paisagem.
O ex-voto é um objeto que carrega narrativas devocionais impregnadas de forte energia espiritual, justamente, por sua elevada destinação simbólica. Sua forma é ao mesmo tempo orgânica e transcendente, possuindo intensa ligação com o corpo e com a vida daquele que o oferece. Antiquíssima, essa tipologia de objetos documenta um pacto entre o humano e o sagrado e é encontrada em várias épocas e culturas. Na arte brasileira aparece nas complexas assemblagens do mineiro Farnese de Andrade (1926–1996), nas pinturas que representam aspectos da religiosidade nordestina realizadas pelo sergipano Antônio Maia (1928–2008), e no vasto repertório de símbolos sertanejos manobrados pelo goiano Siron Franco (1947). O ex-voto está presente na obra de Estêvão Parreiras, tanto quanto está conectado a seu corpo, por meio da tatuagem do desenho de um ex-voto feito em 1951 por Rubem Valentim (1922 –1991), artista que, também, se envolvia com a religiosidade.
Na produção de Estêvão Parreiras, corpo e obra são permanentemente ofertados ao sagrado. Cabeças, pernas, pés, mãos, dentes e corações são recorrentes em seus desenhos assim como nas salas de milagres do interior do país. A estrutura iconográfica do ex-voto é tomada como referência para a composição da figura de um homem de aparência jovial, vestido de calça jeans e camiseta vermelha, que protagoniza as cenas representadas nas obras. Um personagem solitário que conversa consigo mesmo, se multiplica, se desdobra, se volta sobre si mesmo, se expande no espaço, se pune e se redime. O personagem atua como um autorretrato, apontando a confluência da identidade daquele que representa com o que é representado. A cor da camiseta advém do vermelho da vestimenta dos santos mártires da Igreja Católica, aqueles sacrificados por sua fé. Homônimos, o artista, de certa maneira, se identifica com Santo Estêvão, que morreu apedrejado e é considerado o primeiro mártir cristão. Há, também, a figura de São Sebastião flechado que frequentemente é representado em sua produção.
As relações com a esfera do sagrado se aprofundam com a representação de anjos da guarda que se tornam serpentes, altares montados sobre as nuvens, estrelas que simbolizam virtudes, auras energéticas que vibram em cor, auréolas, coroas de espinho e de ouro que encimam ou envolvem as cabeças de seus personagens entronizados no papel. As montanhas, além da relação direta com a paisagem mineira,
podem ser interpretadas como templos religiosos. Conforme as tradições judaica e cristã, são locais de aproximação ao sagrado: no Monte Sinai Moisés recebeu as Tábuas da Lei; o Sermão da Montanha, a transfiguração e a morte de Jesus aconteceram em terrenos elevados.
Dando título à exposição, “O corpo quer fecundar a terra” é um verso escrito por Parreiras que expressa metaforicamente sua enorme vontade de aprofundamento no território enigmático de sua obra, na potência de seu simbolismo associado à passagem fugaz da vida.
Divino Sobral
curador