Goiânia

Com curadoria de Divino Sobral, a mostra reúne 22 pinturas abstratas, enfatizando a exploração rigorosa da cor e da forma geométrica, traços centrais de sua obra. A trajetória de Sued, influenciada pela engenharia e arquitetura, resulta em composições onde a cor ganha musicalidade e força expressiva em estruturas precisas.
Texto por Divino Sobral
Com a exposição Eduardo Sued: o absoluto da cor e a engenharia do plano, a Cerrado Galeria celebra o centenário de nascimento desse artista carioca, apresentando uma visada sobre a singularidade de sua obra dentro da tradição construtiva brasileira. Tal caráter singular, entre outros aspectos, assenta-se no tratamento da abstração geométrica por meio da valorização do caráter absoluto e musical da cor: uma força expressiva autônoma e ilimitada posta em ação dentro do espaço construído com rigor e engenho, cheio de tensões entre estrutura e superfície, forma e planaridade, centro e margem, frente e fundo, vazio e cheio, gesto e matéria, cor e luz.
A trajetória de Eduardo Sued principiou em 1948, quando ele abandonou o curso de engenharia para se dedicar ao estudo de desenho e aquarela com o pintor alemão Henrique Boese (1897-1982). Ainda sem conseguir se estabelecer como artista profissional, entre 1950 e 1951, trabalhou como desenhista de arquitetura no escritório de Oscar Niemeyer (1907-2012). É de se presumir que essas experiências juvenis com engenharia e arquitetura, disciplinas que lidam com a racionalidade espacial, ressoaram na elaboração das obras abstratas de Eduardo Sued, regidas pela ideia de estrutura. De certa forma, pode-se entender que sua pintura se impõe como resultado de um procedimento de engenharia poética empregado a serviço de uma arquitetura de linhas retas e de cores puras, que criam uma ordem cromática ímpar.
Antes de produzir trabalhos encaixados na vertente da abstração geométrica, Eduardo Sued produzia obras figurativas ou de outras tendências abstracionistas. Nos três primeiros anos da década de 1950, viveu em Paris, estudando em academias de arte e absorvendo os ensinamentos do modernismo. Em 1953, retornou ao Brasil e começou a produzir gravuras em metal trabalhando sob orientação de Iberê Camargo (1914-1994), no Rio de Janeiro. A partir de 1954, passou a criar em seu próprio ateliê e, após 1956, começou a dar aulas de desenho, pintura e gravura, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde residiu entre 1957 e 1963, ano em que retornou à capital fluminense.
Sued assumiu compromisso definitivo e incontornável com a arte, enquanto a abstração construtivista, priorizando a gramática geométrica, firmava-se nos circuitos artísticos das vanguardas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Pertencente à geração que promoveu a passagem do concreto ao neoconcreto no Rio de Janeiro, ele, no entanto, não se vinculou, de início, às tendências construtivistas, e, apaixonado pelas obras de Paul Klee, Picasso, Kandinsky e Matisse, sendo dono de um desenho irretocável e de linha precisa, manteve-se orientado pela figuração de ordem modernista, especialmente influenciado por Picasso. Somente anos mais tarde passou a dialogar com o neoplasticismo de Mondrian.
A pesquisa de Eduardo Sued com a linguagem abstrata assentada na cor e nas formas geométricas começou a se desenvolver nas gravuras e pinturas do começo dos anos 1970, sendo, portanto, temporalmente distante e conceitualmente alheia aos fundamentos do construtivismo de ruptura vigente dos anos 1950 e início de 1960, que marcaram os debates do concretismo e do neoconcretismo. A qualidade de sua produção abstrata se elevou a ponto de ofuscar a produção anterior, passando o artista a ser mencionado na historiografia da arte, quase que exclusivamente, por seu trabalho geométrico, sendo abafados os segmentos figurativo e gráfico de sua obra. As pinturas abstratas foram exibidas em alguns dos mais elevados palcos das artes visuais, como a Bienal Internacional de São Paulo (1981; 1987; 1989) e a Bienal de Veneza (1984), exposições que impactaram tanto a leitura crítica de sua produção, quanto a sua assimilação pelo mercado.
A exposição Eduardo Sued: o absoluto da cor e a engenharia do plano é focada em um conjunto de pinturas abstratas que evidenciam algumas das maneiras como o pintor opera com a cor, explorando sua plenitude visual e sua potencialidade musical, sua soberania na ocupação da superfície, sua vocação para sensibilizar e ativar a potência das formas e sua capacidade de se modificar sob a presença da luz ou na relação com o contexto em que está inserida.
Eduardo Sued é considerado um dos grandes coloristas da pintura moderna brasileira, sendo suas qualidades cromáticas ressaltadas por diversos críticos: Paulo Venâncio Filho coloca que sua pintura se faz enquanto “poética da reflexão sobre a cor”; Ligia Canongia afirma que ele explora “os conflitos sensíveis da cor”, dando a ela “um tônus sensorial envolvente, que nos arrebata”; indo mais adiante, Ronaldo Brito considera que Sued “é um liberador da energia da cor”.i
O absoluto da cor se revela exatamente nesse arrebatamento provocado pela liberação da energia da cor em seu estado puro. Algo que ocorre mediante a captura do aparelho sensível do corpo, em uma experiência que extrapola o campo do visível para alcançar o invisível situado na interioridade da linguagem da arte. Flagrado no movimento de ruptura com a interioridade para se manifestar publicamente no mundo, o vetor energético da cor é tratado por Eduardo Sued por meio da ativação de relações de sinestesia do visível com o audível, conferindo sonoridade e musicalidade à cor.
Sued declarou a respeito do seu processo de trabalho: “Costumo ouvir as cores para poder fazer a estrutura cromática das telas” — do que se deduz que a cor está diretamente ligada à arquitetura espacial em que ela se manifesta, ou seja, é coexistente a ela. E ele acrescenta: “O pintor precisa trabalhar com os ouvidos para escutar as exigências das telas” — o que aponta a necessidade de esticar a percepção e forçar a elasticidade da sensibilidade em direção a outros sentidos para observar mais profundamente aquilo que afeta o olhar na sua relação com a arte. Pois, para Sued, “as cores servem para ser vistas e ouvidas”ii, demarcando a concomitância entre cromatismo e musicalidade, aspecto que tem origem na experiência de Kandinsky.
Nas pinturas de Eduardo Sued aqui exibidas, a plenitude da cor é frequentemente explorada em contrastes como acordes dissonantes. Sua paleta é orquestrada no espaço e distribuída em uma estrutura de composição sofisticada que se limita a operar com retângulos arquitetados sobre o grande plano do suporte, também de formato retangular.
O artista, fazendo uso econômico dos meios, consegue expandir sua engenharia espacial e ampliar os recursos de sua linguagem por meio de diversos procedimentos: trabalhando a pressão das bordas sobre o centro ou enfatizando a centralidade como eixo estrutural; demarcando um tipo de base ou rodapé na tela, de modo a criar uma barra que confere estabilidade ao conjunto de elementos; promovendo a convivência de faixas de diferentes larguras com campos cromáticos de extensões variáveis; realizando a aplicação quase mecânica da tinta para enfatizar as propriedades da superfície ou incidindo no gesto para tumultuar e movimentar o plano explorando as direções da pincelada para colher a luz do entorno. Sued elabora suas composições de modo a alterar a percepção das cores, acionando uma sequência de sensações relacionadas com a profundidade, a espessura, a densidade, a luminosidade e a musicalidade, propriedades do grau absoluto da cor, jogando com o que está próximo ou distante, como o que se mostra raso ou fundo, alto ou baixo.
A exposição, que integra o programa da Cerrado Galeria dedicado à difusão da arte brasileira, comemora a vida e a obra de Eduardo Sued — artista mais longevo em atividade no Brasil —, convidando o espectador a fruir esse conjunto de pinturas como se ouvisse uma sinfonia de cores soando sobre as paredes da galeria.